Cecília é carioca. Nasceu em novembro, dia de S. Florêncio (filha de Matilde e Carlos Alberto de Carvalho Meireles, funcionário do Banco do Brasil), em Haddock Lobo, na Rua São Luís. Seriam quatro irmãos, mas nunca chegaram a ser dois sequer, porque, mal nascia um, o outro já tinha morrido. Só ficou Cecília. Perdeu a mãe com três anos e meio, tendo sido criada pela avó, Jacinta Garcia Benevides, da Ilha de São Miguel, Açores, descendente de gente que andou do lado do Infante D. Henrique. A ela dedica Cecília:
"Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos
Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído ...
No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva,
Modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos.”
Minha primeira escola foi a Estácio de Sá, que depois passou a Escola Normal, onde me formei. Olhando para trás me sinto uma criança extremamente poética. Em casa de meu padrinho, Louzada, onde brincava, sempre silenciosa e observado-a, via estátuas, pinturas, coleções de pequeninos, objetos e leques em vitrinas, coisas que me levaram a fazer o Inventário Lírico. A casa de minha avó chegavam continuamente malas, de gente da família que ia faltando e eu, muitas coisas, em vez de conhecê-las em seus lugares, via-as saindo de malas. Lembro bem de uma da qual saíram: uma capa de seda de mamãe, uma fantasia de dominó, roupas de banhos de mar listradas da época. O enxoval foi mais longo que a dona. Ela só esteve casada seis anos. Vovó era uma criatura extraordinária. Extremamente religiosa, rezava todos os dias. E eu perguntava: "Por quem você está rezando?" "Por todas as pessoas que sofrem." Era assim. Rezava mesmo pelos desconhecidos. A dignidade, a elevação espiritual de minha avó influíram muito na minha maneira de sentir os seres e a vida.
Uma das coisas que mais me encantavam em minha vida de infância era o eco que vivia em casa de minha avó. Eu vivia procurando o meu eco. Mas tinha vergonha de perguntar. Recolhida, tímida, deslumbrada, me debruçava no mistério das palavras e do mundo. Queria saber, mas tinha imenso pudor de confessar minha ignorância.
Terminada a Escola Normal, fui lecionar o primário, ainda com um jeito de menina, num sobrado da Avenida Rio Branco. Ali, na mesma sala, havia duas turmas e duas professoras, a metade voltada para cada lado. Pois as crianças, vendo-me quase tão menina quanto elas, viraram quase todas para mim. Sempre gostei muito de ensinar. Trabalhei na Escola Deodoro, ali junto ao relógio da Glória. Fui professora de Literatura da Universidade do Distrito Federal. Criei a primeira biblioteca infantil, ali onde era o Pavilhão Mourisco. Criança que não tivesse onde ficar podia encontrar o livro que lhe faltava, coleção de selos, moedas, jogos de mesa, sonhos, histórias e as explicações de professoras prontas e atentas. Acabou, depois de quatro anos, mas frutificou em São Paulo onde hoje existe até biblioteca infantil para cegos. Também ensinei História do Teatro na Fundação Brasileira. O resto da minha atividade didática está nas conferências em que sempre procuro transmitir algo.
Você sabe que eu tenho muito medo da literatura que é só literatura e que não tenta comunicar?
Vivo constantemente com fome de acertar. Sempre quase digo o que quero. Para transmitir, preciso saber. Não posso arrancar tudo de mim mesma sempre. Por isso leio, estudo. Cultura, para mim, é emoção sempre nova. Posso passar anos sem
pisar num cinema, mas não posso deixar de ler, deixar de ouvir minha música (prefiro a medieval), deixar de estudar, hindi ou o hebraico, compreende?
Casei com vinte anos. Tenho três fllhas: Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda. As três são bibliotecárias mas a minha biblioteca não está fechada. Maria Fernanda você conhece como atriz, não é mesmo? As três têm em comum uma bondade comovente mas são de temperamentos completamente diferentes. Tenho cinco netos. Viúva, casei em 1940 com Heitor Grilo, um homem admirável pela sua capacidade técnica em sua enxtraordinária fé no ser humano, em sua ânsia de tudo elevar. Basta dizer a você que, nesta primeira e única doença que tive e que me segurou cinco meses, ele não arredou pé, um momento de carinho, gesto e palavra prontos, apesar de suas inúmeras responsabilidades e ocupações. Conheci-o quando fui entrevistá-lo certa vez.
Depois ... nunca mais o entrevistei. Entendemo-nos até calados.
A babá Pedrina me contava a história do Palácio de Louça Vermelha. Eu achava que devia ser muito fresco viver num palácio assim e, em menina, já estava pronta a transformar um jarro imenso que havia em casa em palácio, quando, querendo escondê-lo de meus sonhos, de tanto procurarem lugar para ocultá-lo, o patiram em mil pedaços.
Viagens, folclore e idiomas são uma espécie de constante em minha vida. Comprei livros e discos de hebraico. Estudei hindi, sânscrito. O desejo de ler Goethe no original me obrigou a estudar alemão. Não estudo idiomas para falar, mas para melhor penetrar a alma dos povos.
Cecília conhece uma meia dúzia de línguas mais.
Nunca esperei por momento algum na vida. Vou vivendo todos os momentos da melhor maneira que posso. Quero realizar coisas, não para para ser a autora, mas para dar-me, para contribuir em benefício de alguém ou de alguém ou de alguma coisa.
Cecília conta: Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul onde costumava pousar um pombo branco. Nos dias límpidos o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão matavilhosa e me sentia completamente feliz.
CURIOSIDADES SOBRE CECILIA MEIRELLES
A poetisa criou a primeira biblioteca infantil do país em 1934.• Tinha 9 anos quando escreveu sua primeira poesia.• Ela foi professora durante a maior parte de sua vida, inclusive em outros países.
Na Universidade do Texas (EUA), lecionou literatura e cultura brasileira.• A morte marcou a vida de Cecília. Ela nasceu em 7 de novembro de 1901, 3 meses após a morte de seu pai. Depois perdeu a mãe antes de completar 3 anos e foi criada pela avó materna. Seu primeiro marido, o artista plástico português Correia Dias, suicidou-se.• Ela foi a primeira mulher a ter um livro premiado pela Academia Brasileira de Letras.• Entre 1930 e 1934, escreveu uma página sobre problemas da educação no jornal Diário de Notícias.• Em 2001, a família da escritora não permitiu que a cantora Maria Bethânia apresentasse uma canção que continha trechos de poemas de Cecília. Na década de 1970, o músico Raimundo Fagner teve seus discos retirados das lojas por não ter dado crédito à poetisa na canção Canteiros, poema escrito por Clarice e musicado pelo cantor.
Por Cleide